DULCINÉA PARAENSE . O que significa encontrar, em revistas antigas da década de 1930, poemas nunca publicados em livro, versos cujas imagens têm a força que se espera do mais puro lirismo? É descobrir uma nova estrela... É ver o desabrochar de uma flor desconhecida. Dulcinéa Paraense é muito mais do que um sonho. Ela existe e voltará à sua Belém, porque é a homenageada na XV Feira Pan-Amazônica do Livro.
sexta-feira, 2 de setembro de 2011
ACALANTO PARA O HOMEM AMADO
À hora em que chegares
depõe em meu regaço o peso de teu dia
e espera junto a mim pelo conforto
que a noite há de trazer.
Deixa que minhas mãos
façam penumbra nos teus olhos
e que a cantiga que eu cantar
te envolva e deixe no teu corpo
a lassidão que há
de anteceder teu sono.
Se tua fadiga te devolve à infância
se necessitas tanto de meu colo
para a cabeça repousar
não relutes que eu vele e que te guarde.
Em respeito ao teu dia e ao teu cansaço
nada te exigirei.
Apenas te direi coisas de amor
para que sonhes lindo
e escutes minha voz neste acalanto
longe, mais longe, cada vez mais longe,
ressoando em tua memória e em tua infância.
SUAVIDADE
É indecifrável esta suavidade.
Poder ser todo o tempo a inatingida,
aquela que ficou, na tua vida,
mais na tua alma e menos em ti mesmo.
Aquela que teu sonho mais chamou
e a realidade expulsou do teu destino.
Aquela que tu mais compreendeste
porque nunca desvendou o seu mistério.
A única que nunca possuíste
porque tu mais amaste.
VIAGEM
As mãos
são asas cansadas
de tantos voos sem rumo.
Os pés
são mágoas na estrada
– não deixam sêmen nem flor.
Segui.
Os olhos choraram
resinas de dor amarga.
Os lábios
Não blasfemaram
– chamaram apenas por ti.
Mergulhei
nas águas frias:
o pranto não congelou.
Sequei
o corpo ao relento
– alga sobre areia ardente –
Ficou
o corpo sem seiva
e o pranto continuou.
VISIONÁRIA
Nederland, em teus moinhos
me crucifixo
à espera do meu Quixote
que há de vir rasgando os ventos
cavalgando o seu relâmpago
para me resgatar.
Inutilmente, no entanto
anda ele a brandir, sonâmbulo,
suas lanças de martírio
cortando o ar de Toboso,
enquanto em terras de Holanda
meu desejo eriça as crinas
fora de tempo e lugar.
Holanda, 1979.
me crucifixo
à espera do meu Quixote
que há de vir rasgando os ventos
cavalgando o seu relâmpago
para me resgatar.
Inutilmente, no entanto
anda ele a brandir, sonâmbulo,
suas lanças de martírio
cortando o ar de Toboso,
enquanto em terras de Holanda
meu desejo eriça as crinas
fora de tempo e lugar.
Holanda, 1979.
domingo, 28 de agosto de 2011
INTERMEZZO
Senti crescer em mim meu pensamento.
Minha palavra pronunciada
morreu sem ser ouvida.
Ninguém sofreu minha esperança.
Ai! Eu fui como as relvas, os juncos, os salgueiros...
Ninguém me percebeu
mas eu fui a alegria dos caminhos.
EM TUAS MÃOS
Vem de mãos postas para mim.
Nessa atitude de submissão,
serás sobre-humano
porque terás o símbolo de um mundo
no vácuo que abrigares
dentro das conchas de tuas mãos.
ARIDEZ
O sol matou-me a sombra
e me encontrei mais só.
Meu soluço escapa
mas nada alcança em que se faça eco.
(Que alma de rocha nua
é a tua!)
CHAMADO INÚTIL
Quando era grande a solidão
chamei por ti.
Acima das camadas do silêncio
o teu nome ficou
sem eco,
parado, suspenso,
estrela de vidro
congelada no frio.
Teu nome:
uma palavra perdida,
sozinha, como eu.
EQUAÇÃO
De tudo o que parte
ou se parte
fica um pouco.
Da soma de cada pouco
se faz
o que se fica sendo e é.
sábado, 27 de agosto de 2011
A QUE SOU E A QUE FUI
De há muito minhas mãos estão vazias
nada tenho de meu para ofertar-te.
Meus pensares vagueiam em noites frias.
Cansados, já não podem consolar-te.
Tão seca tenho minha fonte, agora,
que não posso saciar a tua sede.
A inquietação de febre me acalora,
me sufoca e me prende em sua rede.
Mas isso é agora. Se tu palmilhares
os lugares por onde eu floresci,
ouvirás, nas palmeiras, os cantares
dos pássaros que fui. Eu me perdi
em mim, bem sei. Um átimo imaturo,
transfigurei-me em árvores e ninhos.
Mas fui semeadora do futuro
nos versos que plantei pelos caminhos.
Belo Horizonte, 1957.
INQUIETUDE
Eu existi como a mulher que tinha a carne como um grito.
Como a mulher que, sem saber, foi alguém para
inúmeros destinos.
Pelas noites brancas eu me erguia
e ia beijar todas as sombras.
Os meus lábios se abriam
para beber a cacimba que escorria do céu
e eu sentia o borbulhar de espumas nos ouvidos: era o mar.
Todos os ventos frios me envolviam
e eu tinha a alegria das folhas balançando…
Senti teus pés machucando as distâncias.
Senti tua voz ecoando nas distâncias.
Senti teu gesto apalpando as distâncias.
E por isso vivi como a mulher que tinha a carne como um grito!
Belém, 1941.
VERSOS ÍNTIMOS
E as palavras de fé que nunca foram ditas?
E as confissões de amor que morrem na garganta?
Bilac
Já leste esta amargura em meus olhos escrita
por lágrimas de dor, de torturas estranhas?
Já sondaste que alguém, rasgando-me as entranhas
da alma, faz-me sofrer com volúpia infinita?
Já sabes que este pranto, em proporções tamanhas
corre, sem mais parar, nesta máscara aflita?
Percebeste que o vácuo, a solidão maldita
faz do meu ser irmão das desertas montanhas?
Que saibas tudo, embora. E mais. Que se eterniza
o amor sem remissão que uma saudade implanta
dentro do próprio ser que a mágoa finaliza.
Só não saibas que a dor vem de ti, e que suplanta
a um soluço de horror que no peito agoniza,
a um brado de paixão suspenso na garganta!
Belém, 1936.
CONSELHO PARA MIM MESMA
Pisa muito de leve... Não maltrata
a terra que é teu berço e que te acolhe.
Sente a carícia do ar, o odor da mata.
Vê este esplendor de sol que o céu recolhe.
Goza, tranquila, a sombra das mangueiras
que abrigam tantos pássaros em festa.
Colhe as plumas em flor das sumaumeiras
e adormece, em madorna, à hora da sesta.
Vive de forma intensa este momento
com que o destino te presenteou
gravando, para sempre, o encantamento
que teu retorno te proporcionou.
E nunca esqueças o deslumbramento
com que esta terra te nutriu e amou.
Belém, 1946.
quarta-feira, 24 de agosto de 2011
RESSURREIÇÃO
Haverá um dia solitário no calendário do mundo.
Uma grande escuridão envolverá a última noite
e a última alvorada será destruída por um incêndio de
raios.
E nada ficará senão o meio-dia solitário.
Serás como o primeiro homem
que se levantou do pó pelo sopro suave da brisa
e tomou o leite das árvores para poder subsistir.
Serás como o primeiro homem, isolado e impercebido.
E então, como a primeira mulher que foi extraída de
dentro do teu ser
Serei concebida pela tua força imaginária.
A tua memória se inflamará, se ampliará,
tomará a forma côncava de um bojo
para poder preencher as enormes curvas do infinito
e buscar no longínquo a lembrança esquecida.
E tua memória, fêmea, me conceberá.
Eu surgirei, porém, com a imaterialidade de tudo o que
não morre
e pararei no teu passado, na tua saudade, no teu
ausente,
em meio do teu dia solitário.
Aí eu ficarei.
Para ser o passado que é mais teu do que a vida que
ainda viverás.
A saudade que ressuscita e que não morrerá porque já
não tem vida,
o ausente que se aproxima e que não poder ser expulso
porque está na distância.
Assim tu me terás.
No teu último instante eu voltarei.
Uma grande escuridão envolverá a última noite
e a última alvorada será destruída por um incêndio de
raios.
E nada ficará senão o meio-dia solitário.
Serás como o primeiro homem
que se levantou do pó pelo sopro suave da brisa
e tomou o leite das árvores para poder subsistir.
Serás como o primeiro homem, isolado e impercebido.
E então, como a primeira mulher que foi extraída de
dentro do teu ser
Serei concebida pela tua força imaginária.
A tua memória se inflamará, se ampliará,
tomará a forma côncava de um bojo
para poder preencher as enormes curvas do infinito
e buscar no longínquo a lembrança esquecida.
E tua memória, fêmea, me conceberá.
Eu surgirei, porém, com a imaterialidade de tudo o que
não morre
e pararei no teu passado, na tua saudade, no teu
ausente,
em meio do teu dia solitário.
Aí eu ficarei.
Para ser o passado que é mais teu do que a vida que
ainda viverás.
A saudade que ressuscita e que não morrerá porque já
não tem vida,
o ausente que se aproxima e que não poder ser expulso
porque está na distância.
Assim tu me terás.
No teu último instante eu voltarei.
COMPREENSÃO
O grito mudo daquela árvore
arrancada do solo
com as raízes apegadas à terra,
eu compreendi
quando senti
nas raízes machucadas dos meus dedos
a dor das minhas mãos arrancadads das tuas...
segunda-feira, 22 de agosto de 2011
CÂNTICO DOS CÂNTICOS
O meu amado é triste como um lírio.
Sou o jardim fechado onde ele vai se desfolhar.
O meu amado é esguio como um longo suspiro.
É meu o peito onde ele vai se agasalhar.
O meu amado é pálido como um astro de sombra.
Sou o lago noturno onde ele vai brilhar.
O meu amado é leviano como a abelha.
Dos meus lábios é o mel que ele vive a sugar.
Eu sou vária porque é vário o seu amor.
Cada vez eu lhe surjo renovada
para nunca o cansar.
Eu sou como a serpente que tem mil cabeças:
o amor do meu amor é que vivo a enganar.
O meu amado é leve como a brisa:
toca em todas as flores sem nunca as macular.
O meu corpo é um canteiro colorido:
vivo a dar flores para o perfumar.
O meu amado é incorpóreo como a luz dos meus olhos
se esconde dentro em mim para eu sempre o buscar.
O meu amado é intangível como uma promessa
nunca ele fica em mim para eu sempre o esperar.
O meu amado é longínquo como uma distância:
passa por meu amor e eu não o posso alcançar.
Dulcinéa Paraense
Dulcinéa estudou em uma escola anexa à Escola Normal, em Belém. Depois, escolheu o curso de Direito. Quando era estudante de Direito, na Praça da Trindade, conheceu Francisco Paulo Mendes que era secretário da Faculdade. Tornaram-se muito amigos e ela dedicou-lhe um poema: “Genesis” (Terra Imatura, ano 3, n. 12, abirl/maio/juho/julho, 1940). Formou-se em 1938, ano em que Terra Imatura começou a circular em Belém. O n. 76 de Pará Ilustrado (ano 2, 21 dez. 1940, p. 11) traz uma foto de Dulcinéa em trajes de formatura e um artigo seu, de duas colunas, sobre o recital da cearense Laís Wallace, em Belém. Ensinou por algum tempo no Colégio Progresso Paraense. Como jornalista, trabalhava na redação de O Estado do Pará e em Terra Imatura, e tinha uma coluna, como crítica de arte, na Folha do Norte.
O RETRATO (Para Orminda, minha mãe)
Dulcinéa Paraense nasceu em Belém, em 2 de janeiro de 1918. Mais nova de 5 irmãos, perdeu a mãe aos dois anos de idade.
Tenho-te diante de mim, a me fitar, tranquila,
bela, fina,
gravada num presente tão longínquo,
mas viva, neste instante, neste agora.
Tua cabeça aflora
sobre o cálice branco, aberto em renda,
da gola do vestido.
Teu retrato fixou um momento de tua alma
pétala frágil
a se refletir na transparência
das lágrimas represadas em teus olhos claros.
Em ti, nada sabia ou suspeitava
que este seria o “flash” derradeiro,
o último flagrante de teu desencontro
com a glória de viver.
Permaneceste jovem, lúcida, inquieta,
imune à destruidora ação das invernias
sem a marca do tempo a adulterar tua boca
sem os sulcos na face e a flacidez na carne.
Vejo-te assim:
pronta para o futuro e para o sonho. E penso
que inumana inversão transmudou nossas vidas!
Hoje, diante de ti, tão mais velha que estou,
me sinto estranhamente antiga
inundada de amor e de desvelos
no incontido desejo de embalar-te em meus braços,
repetindo as histórias e as cantigas
que te serviam pra acalmar meu pranto
e me fazer dormir
quando era eu, tua filha,
mais jovem do que tu.
O DESTINO DO SILÊNCIO
Eu não queria ser como o gesto que passa
O pensamento criador que não se alcança
A frase que se não materializa
Não quero ser como o futuro
Que um dia passará.
Eu preferia ser aquilo que ainda ninguém pensou
Eu preferia ser a matéria mais bruta,
A que me parecesse a mais irracional.
– Uma pedra perdida em meio de uma estrada deserta
onde todos os viandantes encontrassem o descanso da jornada,
onde todos descarregassem o peso morto dos caminhos.
Onde todas as cabeças dos predestinados
para os longos percursos, repousassem
a canseira dos grandes, dos pesados pensamentos.
Para no fim da vida eu ser a única memória suave do caminho,
aquela que ficou vivendo, cheia de todos os cansaços, na estrada percorrida,
a que pôde guardar o segredo das fraquezas do homem
com o silêncio de todas as fraquezas cumuladas.
A que teve o destino
de ser, na lembrança de todos os viageiros,
– a pedra no caminho...
Belém, Terra Imatura, ano 2, n. 8, abr. 1939
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