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domingo, 28 de agosto de 2011

INTERMEZZO


Senti crescer em mim meu pensamento.

Minha palavra pronunciada
morreu sem ser ouvida.

Ninguém sofreu minha esperança.

Ai! Eu fui como as relvas, os juncos, os salgueiros...
Ninguém me percebeu
mas eu fui a alegria dos caminhos.

EM TUAS MÃOS


Vem de mãos postas para mim.

Nessa atitude de submissão,
serás sobre-humano
porque terás o símbolo de um mundo
no vácuo que abrigares
dentro das conchas de tuas mãos.

RENASCENÇA


Entre os cílios, o orvalho.

E a criança que fomos
ressuscita
na que somos.

ARIDEZ



O sol matou-me a sombra
e me encontrei mais só.

Meu soluço escapa
mas nada alcança em que se faça eco.

(Que alma de rocha nua
é a tua!)

CHAMADO INÚTIL


Quando era grande a solidão
chamei por ti.

Acima das camadas do silêncio
o teu nome ficou
sem eco,
parado, suspenso,
estrela de vidro
congelada no frio.

Teu nome:
uma palavra perdida,
sozinha, como eu.

EQUAÇÃO


De tudo o que parte
ou se parte
fica um pouco.

Da soma de cada pouco
se faz
o que se fica sendo e é.

sábado, 27 de agosto de 2011

A QUE SOU E A QUE FUI


De há muito minhas mãos estão vazias
nada tenho de meu para ofertar-te.
Meus pensares vagueiam em noites frias.
Cansados, já não podem consolar-te.

Tão seca tenho minha fonte, agora,
que não posso saciar a tua sede.
A inquietação de febre me acalora,
me sufoca e me prende em sua rede.

Mas isso é agora. Se tu palmilhares
os lugares por onde eu floresci,
ouvirás, nas palmeiras, os cantares
dos pássaros que fui. Eu me perdi

em mim, bem sei. Um átimo imaturo,
transfigurei-me em árvores e ninhos.
Mas fui semeadora do futuro
nos versos que plantei pelos caminhos.

Belo Horizonte, 1957.

INQUIETUDE


Eu existi como a mulher que tinha a carne como um grito.
Como a mulher que, sem saber, foi alguém para
inúmeros destinos.

Pelas noites brancas eu me erguia
e ia beijar todas as sombras.

Os meus lábios se abriam
para beber a cacimba que escorria do céu
e eu sentia o borbulhar de espumas nos ouvidos: era o mar.

Todos os ventos frios me envolviam
e eu tinha a alegria das folhas balançando…

Senti teus pés machucando as distâncias.
Senti tua voz ecoando nas distâncias.
Senti teu gesto apalpando as distâncias.

E por isso vivi como a mulher que tinha a carne como um grito!

Belém, 1941.

VERSOS ÍNTIMOS


E as palavras de fé que nunca foram ditas?
E as confissões de amor que morrem na garganta?
Bilac

Já leste esta amargura em meus olhos escrita
por lágrimas de dor, de torturas estranhas?
Já sondaste que alguém, rasgando-me as entranhas
da alma, faz-me sofrer com volúpia infinita?

Já sabes que este pranto, em proporções tamanhas
corre, sem mais parar, nesta máscara aflita?
Percebeste que o vácuo, a solidão maldita
faz do meu ser irmão das desertas montanhas?

Que saibas tudo, embora. E mais. Que se eterniza
o amor sem remissão que uma saudade implanta
dentro do próprio ser que a mágoa finaliza.

Só não saibas que a dor vem de ti, e que suplanta
a um soluço de horror que no peito agoniza,
a um brado de paixão suspenso na garganta!

Belém, 1936.

CONSELHO PARA MIM MESMA


Pisa muito de leve... Não maltrata
a terra que é teu berço e que te acolhe.
Sente a carícia do ar, o odor da mata.
Vê este esplendor de sol que o céu recolhe.

Goza, tranquila, a sombra das mangueiras
que abrigam tantos pássaros em festa.
Colhe as plumas em flor das sumaumeiras
e adormece, em madorna, à hora da sesta.

Vive de forma intensa este momento
com que o destino te presenteou
gravando, para sempre, o encantamento

que teu retorno te proporcionou.
E nunca esqueças o deslumbramento
com que esta terra te nutriu e amou.

Belém, 1946.


quarta-feira, 24 de agosto de 2011

RESSURREIÇÃO

Haverá um dia solitário no calendário do mundo.
Uma grande escuridão envolverá a última noite
e a última alvorada será destruída por um incêndio de
raios.
E nada ficará senão o meio-dia solitário.

Serás como o primeiro homem
que se levantou do pó pelo sopro suave da brisa
e tomou o leite das árvores para poder subsistir.
Serás como o primeiro homem, isolado e impercebido.
E então, como a primeira mulher que foi extraída de
dentro do teu ser
Serei concebida pela tua força imaginária.

A tua memória se inflamará, se ampliará,
tomará a forma côncava de um bojo
para poder preencher as enormes curvas do infinito
e buscar no longínquo a lembrança esquecida.
E tua memória, fêmea, me conceberá.

Eu surgirei, porém, com a imaterialidade de tudo o que
não morre
e pararei no teu passado, na tua saudade, no teu
ausente,
em meio do teu dia solitário.
Aí eu ficarei.
Para ser o passado que é mais teu do que a vida que
ainda viverás.
A saudade que ressuscita e que não morrerá porque já
não tem vida,
o ausente que se aproxima e que não poder ser expulso
porque está na distância.

Assim tu me terás.
No teu último instante eu voltarei.

COMPREENSÃO



O grito mudo daquela árvore
arrancada do solo
com as raízes apegadas à terra,
eu compreendi
quando senti
nas raízes machucadas dos meus dedos
a dor das minhas mãos arrancadads das tuas...

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

CÂNTICO DOS CÂNTICOS


O meu amado é triste como um lírio.
Sou o jardim fechado onde ele vai se desfolhar.

O meu amado é esguio como um longo suspiro.
É meu o peito onde ele vai se agasalhar.

O meu amado é pálido como um astro de sombra.
Sou o lago noturno onde ele vai brilhar.

O meu amado é leviano como a abelha.
Dos meus lábios é o mel que ele vive a sugar.

Eu sou vária porque é vário o seu amor.
Cada vez eu lhe surjo renovada
para nunca o cansar.
Eu sou como a serpente que tem mil cabeças:
o amor do meu amor é que vivo a enganar.

O meu amado é leve como a brisa:
toca em todas as flores sem nunca as macular.
O meu corpo é um canteiro colorido:
vivo a dar flores para o perfumar.

O meu amado é incorpóreo como a luz dos meus olhos
se esconde dentro em mim para eu sempre o buscar.

O meu amado é intangível como uma promessa
nunca ele fica em mim para eu sempre o esperar.

O meu amado é longínquo como uma distância:
passa por meu amor e eu não o posso alcançar.

Dulcinéa Paraense


Dulcinéa estudou em uma escola anexa à Escola Normal, em Belém. Depois, escolheu o curso de Direito. Quando era estudante de Direito, na Praça da Trindade, conheceu Francisco Paulo Mendes que era secretário da Faculdade. Tornaram-se muito amigos e ela dedicou-lhe um poema: “Genesis” (Terra Imatura, ano 3, n. 12, abirl/maio/juho/julho, 1940). Formou-se em 1938, ano em que Terra Imatura começou a circular em Belém. O n. 76 de Pará Ilustrado (ano 2, 21 dez. 1940, p. 11) traz uma foto de Dulcinéa em trajes de formatura e um artigo seu, de duas colunas, sobre o recital da cearense Laís Wallace, em Belém. Ensinou por algum tempo no Colégio Progresso Paraense. Como jornalista, trabalhava na redação de O Estado do Pará e em Terra Imatura, e tinha uma coluna, como crítica de arte, na Folha do Norte.

O RETRATO (Para Orminda, minha mãe)


Dulcinéa Paraense nasceu em Belém, em 2 de janeiro de 1918. Mais nova de 5 irmãos, perdeu a mãe aos dois anos de idade.



Tenho-te diante de mim, a me fitar, tranquila,
bela, fina,
gravada num presente tão longínquo,
mas viva, neste instante, neste agora.

Tua cabeça aflora
sobre o cálice branco, aberto em renda,
da gola do vestido.

Teu retrato fixou um momento de tua alma
pétala frágil
a se refletir na transparência
das lágrimas represadas em teus olhos claros.

Em ti, nada sabia ou suspeitava
que este seria o “flash” derradeiro,
o último flagrante de teu desencontro
com a glória de viver.

Permaneceste jovem, lúcida, inquieta,
imune à destruidora ação das invernias
sem a marca do tempo a adulterar tua boca
sem os sulcos na face e a flacidez na carne.

Vejo-te assim:
pronta para o futuro e para o sonho. E penso
que inumana inversão transmudou nossas vidas!

Hoje, diante de ti, tão mais velha que estou,
me sinto estranhamente antiga
inundada de amor e de desvelos
no incontido desejo de embalar-te em meus braços,
repetindo as histórias e as cantigas
que te serviam pra acalmar meu pranto
e me fazer dormir
quando era eu, tua filha,
mais jovem do que tu.

O DESTINO DO SILÊNCIO


Eu não queria ser como o gesto que passa
O pensamento criador que não se alcança
A frase que se não materializa

Não quero ser como o futuro
Que um dia passará.

Eu preferia ser aquilo que ainda ninguém pensou
Eu preferia ser a matéria mais bruta,
A que me parecesse a mais irracional.

– Uma pedra perdida em meio de uma estrada deserta
onde todos os viandantes encontrassem o descanso da jornada,
onde todos descarregassem o peso morto dos caminhos.

Onde todas as cabeças dos predestinados
para os longos percursos, repousassem
a canseira dos grandes, dos pesados pensamentos.
Para no fim da vida eu ser a única memória suave do caminho,
aquela que ficou vivendo, cheia de todos os cansaços, na estrada percorrida,
a que pôde guardar o segredo das fraquezas do homem
com o silêncio de todas as fraquezas cumuladas.
A que teve o destino
de ser, na lembrança de todos os viageiros,

– a pedra no caminho...

Belém, Terra Imatura, ano 2, n. 8, abr. 1939